Sunday, April 11, 2010

Um Rio Subterrâneo I



Um dos compositores mais atormentados e perseguidos do século XX, Shostakovich (1906-1975) costuma hoje enfrentar a mordacidade e o pedantismo daqueles que querem mostrar que gostam de "música difícil".

O amado Shosta não teria a inventividade de um Prokofiev (que eu também amo) ou de um Stravinski, para ficarmos apenas nos russos, pois teria feitos concessões a Stalin e ao seu odioso zdhanovismo.

Ora, em primeiro lugar, é fácil criticar de um lugar seco, seguro, de barriga cheia, não? Longe, no tempo e no espaço, de um regime político, o soviético, que torturava seus artistas, literal e/ou metaforicamente.

O que penso é o seguinte: se Shostakovich fez concessões para a "música oficial", a que deveria ser escrita para as massas, o teria feito apenas nas sinfonias. Mesmo assim, ponho isso em dúvida. Em primeiro lugar porque é preciso, repetindo, muito pedantismo para não enxergar conquistas modernas em suas obras para grandes orquestras. Em segundo porque, MESMO QUE TAIS CONCESSÕES HOUVESSEM SIDO FEITAS, seria preciso uma dose cavalar de cinismo e de frieza para não se emocionar com, citemos logo as mais famosas, sinfonias como a Quinta e a Sétima, obras-primas da humanidade, capazes mesmo de redimir esse monte de esterco e egoísmo de que é feito o ser humano. Não por acaso, são precisamente essas duas sinfonias que o maestro Leonard Bernstein escolheu para lhe acompanhar no túmulo (e além deste...).

E, last but not least, mesmo então que um ouvinte pedante e frio queira varrer Shostakovich para debaixo do tapete da música erudita do século XX, restar-lhe-ia o confronto com sua monumental obra de câmera.

E aqui a minha teoria: se, depois de amargar maus momentos, Shostakovich fez mesmo "concessões" em sua obra sinfônica, foi nos seus quartetos de corda (meio de expressão a que os Zdhanovs não davam tanto importância) que o gênio russo pode imprimir toda a sua genialidade.

As sinfonias, assim, ficaram como a mostra visível, a música "permitida" para a época. Por debaixo dessas, correm, em silenciosa fúria, seus 15 quartetos de corda. Como um rio subterrâneo.

2 comments:

Anonymous said...

Legal o blog, muita coisa interessante! Vou dar um pitaco neste post.

Sobre a "perseguição" do Shostakovich, como assim? Por quem ele foi perseguido? Só se for nas ficções escritas pelos reacionários, pelos anticomunistas que falam as maiores asneiras do mundo para diminuir o fato de que a URSS no período de Stalin legou à humanidade nomes como Shostakovich, Prokofiev e Kachaturian.

Por um lado existe uma incompreensão muito grande sobre a "perseguição" dos artistas soviéticos. Mas, por outro, existe muita má fé também.

Se contarmos quantas críticas o Shostakovich recebeu e compararmos com o número de prêmios com que foi reconhecido nota-se algo muito "estranho" nas versões burguesas dos fatos. Se ele fosse tão "reprimido" como se diz, bastava sair do país. O Prokofiev fez isso em 1918, mas disse expressamente que saía por motivos musicais, não políticos.

E o fato do Prokofiev ter fixado residência na URSS em 1935, após ter iniciado sua carreira na Europa, é um fato desconcertante para a crítica ideológica anticomunista que se traveste de musical.

A União dos Compositores, assim como as outras uniões artísticas, como a dos escritores, etc, eram compostas de artistas que nem mesmo eram do partido (exceto quem quisesse ser do partido, mas o Shostakovich, por exemplo, não quis até bem tarde na vida). Logo, não existe isso de que o "partido" fazia tais críticas.

A "repressão stalinista" é um grande mito que não se sustenta diante de uma análise honesta e profunda. Houve repressão sim, mas a círculos políticos muito restritos e localizados, não para a população inteira, nem para a maioria dos artistas. Os números inflados de mortes e supostos "genocídios" publicados na guerra fria tem sido paulatinamente desmentidos à medida que mais e mais arquivos da era soviética são divulgados pelo atual governo russo.

O livro Life and terror in Stalin's Russia, do historiador Robert Thurston (que não é marxista, vale mencionar) é muito esclarecedor neste sentido.

A VIDA NUMA GOA said...

Caro Anônimo,

em primeiro lugar agradeço seus elogios e seu extenso comentário. Este blog trata das coisas que amo, amiúde num tom leve e jocoso. Isso não significa, entretanto, que não esteja aberto a debates.

A perseguição encetada pelo odioso regime de Stálin parece-me fora de discussão. Não se trata, aqui, de ser comunista ou anticominista, comunista ou burguês, revolucionário ou reacionário. Todos os artistas foram severamente vigiados, em todos os âmbitos. Veja o que aconteceu com a Anna Akhmátova, veja como terminou o Maiakóvski e tantos outros.
Prokofiev voltou? É verdade. Isso só mostra como ele era um ser complexo e imprevisível. Se isso afetou a sua música? Compare os seus dois únicos quartetos de corda.
De um modo geral, achei o seu comentário ainda muito preso a dicotomias que já caducaram. Odeio o comunismo como ele foi implantado na URSS. Isso não fará de mim um "burguês", de vez que odeio também o capitalismo imperialista como temos na maioria das nações.
Obrigado pela dica do livro, fiquei interessado!
Cordialmente,
Evandro