Friday, December 02, 2011

Vou levar o meu filho a São Januário



O meu filho fará agora três anos: está quase entrando na idade em que deve começar a ser introduzido a alguns horríveis rituais machistas brasileiros, como o futebol.

Dia desses, pego nele pela calada e aí vamos nós para São Januário, apanhar a barca para a Praça XV que, com alguma sorte, não colidirá contra o cais nem nos deixará à deriva na baía.

Como ainda não sabe ler (um dia?), o primeiro gesto há-de ser o universal infantil de colar o rosto à janela aberta, qual cachorrinho em carro, para ver as águas e a terra distante que passam.

Começarei por lhe tentar nomear morros e picos e fortes da nossa boca banguela, o Cara de Cão ali, os Órgãos acolá, a Fortaleza de Santa Cruz. Terei que ter palavras para a ponte, que não lhe escapará. Sobre esta, aliás, vislumbraremos engarrafamento, mas disso está poupado o meu filho.

Da Praça XV pegaremos o 209. Ao cruzarmos a Leopoldina, tentarei persuadir-lhe como pode ser bonita, ainda que pesada, a estrutura da enorme Estação. Depois identificar-lhe-ei algumas ruas ao longo do caminho. Quando começar a chover, surgirão velhos edifícios e galpões e depósitos e trapiches abandonados, ruas tristes e carcomidas. Ele quererá saber o nome e o destino de cada prédio, de cada pessoa, e na sua cabeça de criança ficará guardada a mesma imagem que guardo da infância: um ônibus que atravessa rápido, como se em fuga, um mundo estático, feito de personagens de presépio que parecem plantados nos pontos, nas ruas, nos quintais das casas, com a única finalidade de nos olharem enquanto passamos.

Almoçaremos no Santa Genoveva, mas não sem antes, claro, traçarmos meia dúzia das impagáveis empadas da Dona Olímpia no Quinta de São Cristóvão, por sinal um dos templos da vascainidade desta cidade. Tentarei tirar uma foto da velha cozinheira minhota, o que muito o divertirá, já que ela, índia arredia, de tudo fará para não ter a alma capturada em meu Nokia.

Subiremos a pé a Rua São Januário, quando então irei falar-lhe do Policarpo e de minhas tentativas de localizar-lhe a casa. Meu filho tudo ouvirá, mas a esta altura um burburinho irá num crescendo inevitável penetrar em nossos ouvidos.

Lancharemos, numa barraquinha, cachorros-quentes Geneal, que isto aqui é jogo de futebol. Uma Coca-Cola para ele, um latão para mim. Dois pacotes de Biscoito Globo, bandeiras, e aí vamos nós, o coração descompassado ao ritmo do ruído surdo dos passos da multidão a caminho do Estádio, nosso Estádio, patrimônio mundial, glória neobarroca construída com o sangue dos portugueses e dos pretos e dos pardos pobres a quem tentaram humilhar e só fizeram fortalecer.

Das entranhas escuras desse monstro de cimento emergiremos para a luz ofuscante dos holofotes junto aos quais a chuva forma fios de prata brilhando na noite. Lá em baixo, o gramado, lindo, perfeito, parece esperar para ser pisado só por deuses, não por simples mortais. De repente, ele estremecerá, a sua mão apertará a minha, excitado e assustado, os olhos fixos na boca do túnel pela qual saem correndo, um a um, os onze deuses cruzmaltinos, saudados por um grito de vinte e cinco mil gargantas: "Vaaaaaas-coooo! Vaaaaaas-coooo!" Este é o instante mágico, o instante iniciático, que sela para sempre o amor irracional entre um homem e um clube de futebol, um amor para a vida, que ninguém, jamais, poderá alterar.

Esta iniciação é tarefa de homem, dever indeclinável de pai, que mulher alguma entende. Nem adianta depois tentar explicar: "Como é que é o futebol, mãe? Olha, cachorro quente amassado no bolso, uma multidão aos gritos, um gramado a brilhar, preto e branco e cruz de malta por todos os lados e nós, encharcados e roucos, patinando na lama." Enfim, uma paixão inexplicável.

PS: Possível que, no caminho, cruzemos com um e outro tricolor e botafoguense que, passado o impulso inicial de menear a cabeça, certamente entenderão este ritual de passagem e iniciação e sorrirão com simpatia.

PS: Este texto foi adaptado do belo texto de Miguel Sousa Tavares, "Vou levar o meu filho às Antas", de Não te deixarei morrer, David Crockett.

6 comments:

Costa said...

eu lembro até hoje do meu primeiro jogo em São Janu. Leva o Dantinho na Liberta!!! E se prepara pro amor que vai surgir, que não vai ser pequeno! VAMOS TODOS CANTAR DE CORAÇÃO!

Costa de novo said...

aaah, o texto tá lindo!!

Mateus Maciel said...

Eu e minha mãe damos todo o apoio! Hahahaha!!!

Stephanye said...

Eu senti a emoção de entrar em São Januário como se fosse a primeira vez, de novo! Seu texto ficou perfeito :D

Ah, o Dante ainda pode ter a emoção de conhecer os jogadores dentro do campo! Mais um lado ótimo de ser criança, e de ser vascaíno também :)

Carol Sandoval said...

Adorei o texto, Evandro! Apesar de ser tricolor, eu nao tenho absolutamente nada contra nenhuma outra torcida. Tenho certeza q esse passeio será mágico!! Faça o favor de postar a fotos!
Bjos!

Penta said...



@ Evandro

é para mim emocionante e muito gratificante (enquanto 'blogger') perceber que um texto que tanto aprecio já chegou a terras de Vera Cruz, inspirando-te na elaboração de uma prosa, a todos os títulos, sublime.

portanto, apesar de não ser o seu autor (antes Miguel Sousa Tavares) e na "qualidade" de intermediário em todo este processo, o meu sentido muito obrigado! pela sua visita e pelas suas gentis palavras! :D

ps:
é incrível como a sensação de se viver o Futebol extravasa a clubite/paixão por um clube de futebol

abr@ço
Miguel | Tomo II